Sim, existe filosofia
latino-americana e brasileira. Somos capazes de pensar com o mesmo valor
epistemológico que a Europa. A inovação da filosofia latino-americana é o olhar
do outro a partir da perspectiva do outro. A forma de ser e pensar da América Latina
em especial o Brasil é muito frutífero para o mundo filosoficamente falando. A
forma de lidar com o multiculturalismo, a convivência pacífica com povos e
etnias diversas tem revelado ao mundo uma nova maneira de ser da sociedade. O
início do pensamento latino-americano e brasileiro tem a influência do valor
epistemológico europeu, só que não ficamos presos a este valor, estamos indo
além, buscando os nossos próprios caminhos, o que é fazer uma filosofia
própria.
O grego, o
latino, o inglês, o francês, ou o alemão praticam a filosofia a partir de sua
origem concreta. Sem que esta origem tenha sido objeto de alguma preocupação.
[...] Por que, então, os latino-americanos nos vemos forcados a iniciar o nosso
filosofar, colocando-nos o problema de se tal filosofar é latino-americano?
(ZEA, p. 1)
A
filosofia se refere a problemas universais, eternos, não pode ser submetida a
determinações geográficas ou temporais. A filosofia enfrenta os grandes
problemas que transcendem a preocupação por temas circunstanciais. A filosofia
se coloca problemas e busca soluções. Por isso, a pergunta sobre a existência
ou não existência de uma filosofia latino-americana parece estranha à filosofia
que buscamos.
Os
latino-americanos pretendem ir muito além da dúvida cartesiana. Pois duvida da
própria capacidade de pensar, da capacidade de refletir ou filosofar, da própria
existência. E é esta dúvida que o move o filosofar. É um filosofar que coloca
em questão a capacidade de filosofar. É o filosofar a partir de suas origens.
Porém, estamos
duvidando realmente de nossa capacidade de pensar? Ou simplesmente estamos
duvidando de um modo de pensar que parece não coincidir com outro modo de
pensar, o qual qualificarmos de filosofia autêntica? Isto é, não estamos, por acaso,
partindo de um determinado pressuposto, o do que deve ser considerado como
filosofia? Porque é inegável que, ao fazermos perguntas sobre a possível
existência de uma filosofia latino-americana, já estamos, de uma ou de outra
maneira, pensado, refletindo, filosofando. Salvo se considerarmos que este
pensar, refletir ou filosofar não seja filosofia. Ou ao menos não seja o que se
considera como autêntica filosofia. (ZEA, p. 2)
Os
filósofos nunca se preocuparam em saber se o que estavam fazendo era ou não
filosofia. A interrogação sobre a existência de uma filosofia latino-americana é
estranha a uma filosofia autêntica, porque nunca antes os filósofos se haviam
colocado tal problema com respeito à origem espacial e temporal de tal
filosofar.
Será que a reflexão latino-americana é
autêntica? Aquilo que é verdadeiro, legítimo, genuíno? Parece que fazer uma
filosofia autêntica é o que a reflexão europeia ou ocidental deu origem ao
longo de sua história. A inautêntica é a filosofia que surgiu deste lado do atlântico.
A reflexão do latino-americano não seria um eco e reflexo de algo que é alheio,
que vem de fora? A reflexão latino-americana é original? Que parece inventada
ou imaginada, sem modelo e tem cunho ou carácter próprio?
Paradoxalmente,
aqueles mesmos que negam que o refletir latino-americano possa ser chamado de
filosofia, já que não encontram nele nenhuma expressão de um pensamento
sistemático semelhante aos produzidos pela filosofia européia, sustentam,
igualmente, que a América Latina não produziu nada de original neste campo.
Isto é – como se repetissem Hegel – sustentam que o pensamento
latino-americano, produzido até agora, foi simples eco e reflexo do pensamento
filosófico europeu. Pura e simples imitação do que outros fizeram. (ZEA, p. 6)
Essa
afirmação de inautenticidade pode ser questionada, já que os latino-americanos
ao quererem imitar a filosofia europeia fazem outra coisa, a partir de sua
própria originalidade. É a nossa realidade que faz expressar os frutos deste
novo filosofar. Não podemos dizer que não somos influenciados pela filosofia
europeia, o que ocorre é que partimos da filosofia europeia para construirmos o
nosso modo de filosofar, somos originais dentro de nossa própria realidade. O
que é então a originalidade? Originalidade não é, supostamente, retirar algo do
nada. Originalidade é fazer algo distinto do já existente. A partir desta
originalidade os latino-americanos são autênticos. A originalidade está na
autenticidade da reflexão.
Ao
se perguntar sobre suas próprias carências, sobre a possível existência ou
inexistência de uma reflexão, os latino-americanos já estavam, pura e
simplesmente, filosofando sobre uma realidade concreta; a realidade concreta
desta nossa América.
Nosso
pensamento, reflexão ou filosofia será, precisamente, expressão da tomada de
consciência desta situação. Será a consciência da dependência o que deu origem
a essa estranha reflexão sobre a qual inquirimos se pode ou não ser chamada de
filosofia. Interrogação que já é, em si, expressão de uma situação de
dependência da qual os latino-americanos tomaram consciência. Interrogação que
está animada pela preocupação que se impôs aos homens da América para que se
assemelhassem a seus colonizadores. Isto é, os homens da América não serão
considerados homens, se não adquirirem as supostas qualidades de que fazem gala
seus colonizadores. Só o serão quando se assemelharem plenamente a eles. Quando
forem cópia de seus senhores. Senhores modelo, arquétipo do humano por
excelência. Não é esta por acaso a preocupação de quem pergunta sobre se temos,
ou não, uma filosofia própria? E o pergunta em relação a um certo modelo de
refletir filosófico? Se afirma que refletiremos filosoficamente só na medida em
que este nosso refletir se assemelhe ao refletir dos filósofos que deram origem
ao que se considera a filosofia por excelência. (ZEA, p. 13)
No
séc. XIX os latino-americanos buscavam uma ordem libertária que substituísse a
ordem colonial. O objetivo era mudar a sociedade e mudar o homem. A política e as
relações sociais foram os primeiros problemas a serem enfrentados. Uma nova
ordem sobre o signo da liberdade e de homens que mudassem a herança colonial que
foi imposta a suas mentes, por uma nova concepção do homem e da sociedade que torne
possível o regime de liberdade. A emancipação mental havia de se expressar como
reeducação dos latino-americanos. Educar para a liberdade foi à meta de
pensadores latino-americanos. Só que esta liberdade almejada pode ser
questionada, o modo de ser da América Latina reflete a situação de dependência
na forma de pensar a vida e buscar a independência e o progresso
Será a partir da
consciência da inferioridade, da própria realidade, da própria história, da
própria formação histórica e étnica, e da consciência da superioridade das
nações que formam o chamado mundo ocidental, que se irá tecendo a trama de uma
nova subordinação, de uma nova dependência e servilismo. [...] Civilização é
ser como as grandes nações adiantadas do progresso. Barbárie é o modo de ser próprio
dos latino-americanos, originado da herança que a colonização ibérica havia deixado
na América. Barbárie era o índio, o crioulo, a mescla com raças inferiores. (ZEA,
p. 19)
Ou
seja, o homem latino influenciado pelo positivismo, com seus traços, sua forma
de ser estava em cheque. Deduzida e aceita a inferioridade da América Latina e
sua cultura, assim como a superioridade dos povos europeus, no velho e no novo
continente, ficava também deduzido o papel que há de ter a América Latina
dentro do âmbito do progresso. Um progresso que só havia de vir pela
assimilação racial, cultural e social dos povos que encarnavam o progresso. A América
Latina havia caído em uma armadilha filosófica que justificava novas formas de
dependência. A experiência do filosofar no século XIX na América Latina não foi
benéfica para seu povo.
Do
único passado que a América Latina tem da única história e realidade que são
próprias. A América Latina deve partir dessa experiência histórica, a da
colonização, a da dependência para pensar uma alternativa, um modo de ser
próprio, a partir da própria realidade, sem dependência de modelos
estrangeiros. A América Latina pode se auto afirmar, esse é o filosofar latino,
buscar resolver os seus próprios problemas por si mesmo. É uma emancipação
mental da América Latina. O problema central continua sendo o da consciência da
dependência e da necessidade de transcendê-la, de lhe pôr um fim. Uma profunda
preocupação da filosofia latino-americano de nossos dias está expressa com a
designação da filosofia da libertação. Isto é, filosofia preocupada em mostrar
os recursos e as novas possibilidades desta libertação, da mesma forma que a
anulação de toda expressão de dependência. Conhecer, e assimilar, qualquer nova
expressão da filosofia de outros povos e homens, porém sempre em função das
necessidades de nossos povos e homens. Buscando, não a universalidade pela via
da imitação, mas a universalidade desde que nossos problemas e soluções possam
ser os problemas e soluções de outros homens e povos. Assim torna-se possível
fazer filosofia em toda América Latina.
Referência:
ZEA, Leopoldo. Filosofia
Latino-americana. Tradução: Nasser Kassem Hammad.
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