Que é o mundo? E
que deve ele ser para o cristão? Duas questões bem interessantes para todos
quantos desejam pertencer inteiramente a Deus e assegurar a salvação.
Que é o mundo?
É o inimigo de Jesus Cristo, o inimigo do
Evangelho.
É esse conjunto de pessoas que, presas às coisas
sensíveis, fazendo consistir nelas a felicidade, têm horror aos sofrimentos, à
pobreza, as humilhações e consideram estas e aqueles, como verdadeiros males de
que cumpre fugir e contra os quais de deve estar garantido, custe o que custar.
Que, em contraposição ligam o maior apreço aos
prazeres, as riquezas e as honrarias; reputam umas e outras, verdadeiros bens;
os desejam e buscam portanto, com ardor extremo e sem escolherem os meios; os
disputam, invejam e arrebatam uns e outros; só se estima ou desprezam-se
mutuamente, na medida em que os possuem; em suma, fundam na aquisição e no gozo
desses bens todos os seus princípios toda a sua moral, todo o plano de sua
conduta.
O espírito do mundo é, pois, evidentemente oposto
ao espírito de Jesus Cristo e do Evangelho. Jesus Cristo, na oração por Seus
eleitos, declara não orar pelo mundo; anuncia, aos Apóstolos e, nas pessoas
destes, a todos os cristãos, que o mundo os há de odiar e perseguir, como a Ele
próprio odiou e perseguiu. Quer que a seu turno façam eles contínua guerra ao
mundo.
Nos primeiros séculos da Igreja, quando quase todos
os cristãos eram santos e a parte restante da humanidade achava-se abismada na
idolatria, fácil tornava-se discernir o mundo, conhecer a gente que se podia
frequentar e a que se devia evitar.
O mundo, então desencadeado contra Jesus Cristo,
distinguia-se por sinais inequívocos. Depois que nações inteiras abraçaram o
Evangelho e o relaxamento se introduziu entre os cristãos, formou-se pouco a
pouco no meio deles um mundo no qual reinam todos os vícios da idolatria, um
mundo ávido de honras, prazeres e riquezas, um mundo cujas máximas combatem
diretamente as máximas de Jesus Cristo.
Mas, como esse mundo professa exteriormente o
cristianismo, hoje é mais difícil discerni-lo. A sua frequentação também se
tornou mais perigosa porque ele disfarça sua má doutrina com mais habilidade,
propaga-a com mais tento, emprega toda a sua sutileza para conciliá-la com a
doutrina cristã e, nesse intuito, enfraquece, suaviza tanto quanto pode o santo
rigor do Evangelho escondendo cuidadosamente, por outro lado, todo o veneno da
sua moral.
Daí um perigo de sedução tanto maior porquanto não
se percebe e contra ele não se está em guarda; daí certo espírito de transigência
e adaptação, pelo qual se procura conciliar a severidade cristã com as máximas
do século sobre a ambição, a cobiça, o gozo dos prazeres; acordo impossível,
condescendências ou atenuações que tendem a lisonjear a natureza, alterar a
santidade cristã e formar consciências falsas.
É incrível a que ponto chega o desconcerto, mesmo
entre pessoas que se prezam de ser piedosas e devotas: desvario num sentido
mais difícil de reprimir do que o resultante de uma conduta abertamente mundana
e criminosa, porque não querem reconhecê-lo e a seu respeito se iludem.
Se quisermos viver nesta terra sem participar da
corrupção do século, só temos um partido a tomar, o de rompermos absolutamente
com o mundo pelo coração e entrarmos a sentir com São Paulo, quando exclamava:
O mundo está crucificado para mim, e eu estou crucificado para o mundo.
Oh! que belas palavras, e quão profundo o sentido
que encerram!
A cruz era outrora o suplício mais infame, o
suplício dos escravos.
Dizendo
o Apóstolo que o mundo está crucificado para ele, é como dissesse: Tenho pelo
mundo o mesmo desprezo, a mesma aversão, o mesmo horror que por um vil escravo
crucificado pelos seus crimes: não posso suportar lhe a vista, ele é para mim
objeto de maldição, com o qual toda ligação em todo trato e toda relação me são
interditos.
Nada de exagerado tem, ao invés, apenas justo e
legítimo é esse sentimento de São Paulo, que deve ser o de todo cristão e a
razão é evidente: o mundo crucificou Jesus Cristo, depois de havê-lo caluniado,
insultado, ultrajado.
Crucifica-o ainda todos os dias: é, pois, justo que
o mundo, por sua vez, esteja crucificado para o discípulo de Jesus Cristo; é
justo ter o discípulo horror ao inimigo capital do Mestre, do seu Salvador, do
seu Deus.
Assim a renúncia ao mundo é uma das promessas mais
solenes do batismo, uma condição essencial, sem a qual a Igreja não nos teria
admitido entre seus filhos.
Pensamos nessa promessa?
Pensamos nas obrigações que ela acarreta?
Examinamos até onde deve chegar a nossa renúncia?
A renúncia do cristão a respeito do mundo deve ir
tão longe quanto à renúncia do mundo a respeito de Jesus Cristo.
Esta regra é clara e em face da sua precisão fora
impossível nos enganarmos. Só nos resta aplicá-la em toda a extensão. O mundo
tem o seu evangelho: só temos que tomá-lo numa das mãos e o Evangelho de Jesus
Cristo na outra; só temos que comparar, sobre os mesmos objetos, a doutrina e
os exemplos de um e de outro, só temos que opor Jesus Cristo na Cruz, no
sofrimento, no opróbrio e na nudez, ao mundo cercado e embriagado de honras,
riquezas e prazeres, e dizer a nós mesmos: A quem desejo pertencer?
Eis aí dois inimigos irreconciliáveis, fazendo-se
reciprocamente a guerra mais cruel. A favor de qual deles desejo declarar-me?
É-me impossível ficar neutro, ou tomar o partido de ambos. Se escolho Jesus
Cristo e a Sua Cruz, o mundo me reprova; se me prendo ao mundo e às suas
pompas, Jesus Cristo me rejeita e condena: poderei hesitar? É cristão aquele
que hesita sequer um instante?
Mas, se uma vez nos alistamos sob o estandarte da
Cruz, não é evidente que desde esse momento o mundo se torna inimigo com o qual
não há mais a fazer pazes nem lhe dar tréguas?
Como isso vai longe, ainda uma vez! E como os
cristãos seriam santos se da grandeza de seus compromissos bem se compenetrassem.
Não basta estar o mundo crucificado para nós, é
preciso que consintamos estar também crucificados para o mundo, isto é, que o
mundo nos crucifique como crucificou a Jesus Cristo; nos guerreie do mesmo modo
que guerreou a Jesus Cristo; nos persiga, calunie e ultraje com igual furor;
nos arrebate, finalmente, os bens, a honra, a própria vida.
É mister não só consentirmos em todos esses
sacrifícios de preferência a renunciarmos à santidade cristã, mas também fazer
disso motivo de alegria e triunfo.
O discípulo deve gloriar-se de ser tratado como o
Mestre: Se eles me perseguiram, dizia Jesus Cristo a Seus Apóstolos, também vos
perseguirão: é coisa infalível. O mundo não seria o que é, ou os cristãos não
seriam o que devem ser, se escapassem à perseguição do mundo.
Procuramos muitas vezes certificar-nos do nosso
estado; quiséramos saber se somos agradáveis a Deus, se Jesus Cristo nos
reconhece como pertencentes a Ele. Eis um meio bem próprio para esclarecer-nos
e dissipar todas as nossas inquietações: indaguemos se o mundo nos estima e
considera, se fala bem de nós e nos procura.
Neste caso não pertencermos a Jesus Cristo. Pelo
contrário, se ele nos censura e ridiculariza, se nos calunia foge de nós, nos
despreza e odeia, oh! Que grande motivo de consolação, oh! Que poderosa razão
para crermos que pertencemos a Jesus Cristo!
Vejamos, pois, seriamente diante de Deus, o que o
mundo é para nós e o que somos para o mundo.
Sondemos as nossas disposições interiores,
estudemos os sentimentos mais profundos do nosso coração: acharemos por certo,
motivo para nossa confusão e humilhação; verificaremos haverem as máximas do
mundo deixado profundos vestígios em nosso espírito e que em muitas
circunstâncias delicadas os nossos juízos se aproximam ainda dos seus.
Verificaremos que somos ciosos de sua estima e
temeremos seus desprezos; que gostamos de cultivar e entreter certas relações e
veríamos com desprazer os outros afastarem-se de nós; que temos, em várias
ocasiões, condescendências, atenções, respeitos humanos que nos incomodam peiam
e conservam numa espécie de constrangimento e dissimulação.
Veremos, numa palavra, que não somos bem claramente
a favor de Jesus Cristo e contra o mundo.
Mas não desanimemos: triunfar plenamente do mundo,
afrontá-lo, desprezá-lo, achar bom que por sua vez ele nos afronte e despreze,
não é obra de um momento.
Exerçamo-nos nas pequenas ocasiões que se
apresentam: se Deus nos ama, jamais deixará de nos proporcionar e pelas
pequenas vitórias reparemo-nos aos grandes combates. Lembremo-nos, sendo
preciso, das palavras de Jesus Cristo: Tende confiança, eu venci o mundo.
Supliquemos-lhe que nos ajude a vencer, ou antes,
que Ele mesmo vença em nós o mundo e destrua em nossos corações o reino deste
para aí estabelecer o Seu.
Excerto retirado do Manual da Almas Interiores
Compêndio de Opúsculos Inéditos Pe. Grou.
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